sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Cinema português - a falta que ele nos faz




Morreu o Fernando Lopes, Realizador português competente, honesto e bastante sensível...





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 Não tanto a propósito deste infausto acontecimento - e sem prejuízo de me associar à justa homenagem que o Povo português lhe deve prestar -, a sua morte logrou provocar-me uma reflexão sobre a falta que faz, realmente, a existência de uma componente fílmica mais presente e visível na narrativa popular sobre o Portugal contemporâneo, que se ofereça como contraponto, por um lado, à trivialidade e aos estereótipos televisivos e tablóides e, por outro, à excessiva densidade (que, para o Cidadão comum, é quase inacessibilidade) da Literatura e da Arte.


  Um País, uma Sociedade, um Povo, carecem de uma auto-imagem consistente, que não apenas estruture a sua identidade, como sobretudo apoie e sustente a sua própria auto-estima. Em Portugal, desde o final da festa colectiva e do "orgasmo" social constituído pelo 25 de Abril, a narrativa popular tem-se infelizmente vindo a afunilar e a empobrecer, esmagada pela dominância de um discurso tosco, simplista, reverente e enviesado nos meios de comunicação de massas e emparedada por uma efabulação rebuscada e quase indecifrável nas formas de expressão eruditas, sejam elas literárias, dramáticas, ou plásticas.


    O imaginário popular sobre Portugal, nos últimos quarenta anos, pouco evoluíu assim, desde o velho estereótipo do "Zé Povinho" analfabeto, inculto, abrutalhado e matreiro, cujos interesses se confinavam a Fado, Futebol e Fátima - mais uma ou outra Tourada à mistura, incluindo uma, ora envergonhada, ora debochada, brejeirice à la Vilhena... -, para a prevalência do novo paradigma do "Tuga" xico-esperto, fútil, convencido e gabarola, alimentado pelas capas dos diários e semanários de maior tiragem, pelas revistas côr-de-rosa e da "socialite", pelas tele-novelas e pelos "reality-shows" televisivos, que tudo caldeiam, numa mistela intragável de bizarria e banalidade, desde a Política aos Negócios, passando pelo Futebol e pela Justiça, com apetência muito especial pela Criminalidade violenta, ou simplesmente escabrosa (pedofilia, etc.).


     O resultado de tudo isto é uma cada vez mais profunda ignorância popular, não só sobre a realidade atual portuguesa, como igualmente sobre o nosso Passado histórico, muito em particular o mais recente, digamos desde as designadas Lutas Liberais, e que se revela particularmente confrangedora no tocante ao período final da Monarquia e a todo o Século XX, incluindo, como é óbvio, o complexo processo histórico decorrente da agonia e do derrube do designado "Estado Novo".


       É precisamente aqui, na História dos últimos duzentos anos, que a importância do Cinema se revela determinante, como poderoso meio de formação de uma consciência colectiva histórica. Vejam-se nomeadamente o caso dos E. U. A., com toda a mitologia associada ao "nascimento da Nação" e à "conquista do Oeste" (ou do Espaço...), assim como o papel fulcral do Cinema oeste-europeu na formação de uma consciência histórica comum, muito em particular sobre o período das duas Guerras Mundiais, e em especial sobre o Holocausto, ou mais recentemente sobre o fim do sistema Comunista, no Leste europeu, apenas para citar os casos de Cinematografias mais próximas e mais poderosas (mas poderia falar-se, de um modo muito semelhante, àcerca do Cinema japonês, do indiano, do chinês, do iraniano, ou do brasileiro, apenas como exemplos).


       Entre nós, aquilo de que mais se sente a falta é, pois, de uma narrativa cinematográfica sólida, que nos recrie colectivamente na tela, que nos parodie, que nos una, como Cultura e como Língua e, por que não dizê-lo, que contribua para uma certa mitificação de alguns dos nossos personagens ou momentos mais marcantes, enquanto Indivíduos e enquanto Sociedade.


         De certa forma muito eficaz, foi precisamente isso que as Comédias dos anos 30 e 40, com Ant.º Silva, Beatriz Costa, Ribeirinho, Ant.º Vilar, Milú, Vasco Santana, Curado Ribeiro e tantos outros, conseguiram brilhantemente fazer, mas que nunca mais o Cinema português logrou repetir, apesar de alguns breves sucessos de público, muito pontuais e incaracterísticos, e alguns outros de crítica, até internacional, estes contudo demasiado centrados num único Autor e num âmbito de público erudito e, por isso, demasiado restrito, que pouca ou nenhuma contribuição consegue transportar para a construção da tal narrativa histórica popular.


       Perguntei-me algumas vezes por que razão terá de ser assim e chego à conclusão de que tal se ficará a dever, em grande parte (e para além de todas as carências que possam ser atribuíveis à proverbial escassez de meios de produção e à pequenez do nosso mercado cinéfilo, que óbviamente detêm uma grande relevância), a uma gritante falta de adesão da ficção cinematográfica à(s) realidade(s) portuguesa(s), pecha que, muito compreensívelmente, só no Cinema documental se tem felizmente conseguido de certa forma ultrapassar, com um crescente sucesso até, nos últimos anos (e de que, por exemplo, «Torrebela» e «Fantasia Lusitana» são excelentes representantes).


          Pena que os nossos melhores guionistas satíricos televisivos ou radiofónicos, como Ricardo Araújo Pereira e João Quadros, mais recentemente, ou sobretudo o paradigmático Herman José, não tenham ainda conseguido inspirar uma plêiade de argumentistas de Cinema com semelhante acutilância crítica e igual perspicácia analítica (Nicolau Breyner tem-no tentado fazer, mas sem sucesso assinalável), mas o facto indesmentível é que, quem vê uma fita portuguesa do nosso tempo, muito difícilmente nela reconhece Portugal e os portugueses! E isso é lamentável.


     Ao invés, nas comédias de António Lopes Ribeiro, ou de Leitão de Barros, salta à vista essa coerência, essa similitude, essa adesão à realidade social do seu tempo, ainda que eventualmente simplificada, ou estereotipada. Mas a congruência social é bastante patente. Nos diálogos, na representação, nos "décors", nos figurinos, nos adereços, nos argumentos, na própria construção das personagens. E essa congruência, vá lá saber-se porquê, perdeu-se súbitamente, a partir dos anos 50.


        Quem vê um Filme português em que, por exemplo, as personagens principais se chamam "Constança" e "Santiago", fica logo de início com uma incómoda sensação de uma certa "falsificação social"! Que progride depois pela definição das personagens, pelos enquadramentos sociais e históricos, pela linguagem utilizada, pela dicção e pronúncia, pela própria escolha dos actores ("casting") e nunca mais acaba...


        Filmes como "Três Irmãos", ou "Os Olhos da Ásia", são de facto bastante eloquentes sobre tudo o que acabo de afirmar. E o único Autor nacional que conseguiu, de alguma forma, romper o cerco dessa irrealidade visceral, que há décadas corrói por dentro a credibilidade do Cinema português, foi o João C. Monteiro, honra lhe seja feita. Apesar de todos os "tiques" dos seus Filmes, por vezes até irritantes, foi nesse aspecto uma curiosa "andorinha". Mas que, até ver, ainda não trouxe a Primavera...

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